- Prolepse analéptica, Robinho.
- Prolepse cataléptica?
- Analéptica, meu filho, analéptica, que vem de analepse. Catalepsia é outra coisa, é aquilo do Solfieri, do Álvares de Azevedo.
- Ah, o rapaz que encontrou uma mulher morta né?
- Tecnicamente ela não estava morta, e sim cataléptica; mas, sim, é isso aí.
- Certo. Desse eu me lembro. E o que é isso aí que tu tá falando?
- Prolepse analéptica, meu caro, isso é fantástico! É a união, em uma mesma passagem, da prolepse com a analepse, isto é, de uma antecipação do futuro com uma reminiscência passada! A genialidade reside justamente no fato de que são duas coisas opostas.
- Uma antecipação do futuro...
- ... com uma reminiscência passada! Isso!
- Ou seja, o cara narra um fato que é passado e futuro ao mesmo tempo? Como é isso?
- Não, ele não narra um fato que é passado e futuro ao mesmo tempo, é claro que não, Robinho, isso é um absurdo metafísico. Ele narra, por exemplo, uma lembrança do passado que há-de acontecer num momento futuro.
- Ham?
- Meu filho, me acompanhe. Lembra do García Márquez?
- Do Cem Anos de Solidão?
- Isso, exatamente o "Cem Anos de Solidão"! Lembra?
- Sim, lembro, o que tem?
- Lembra a primeira cena?
- Que o sujeito lá foi ver o gelo.
- Não, antes.
- Que ele estava pra ser fuzilado.
- Isso! Um pouco antes.
- ... que no futuro ele estaria diante do pelotão de fuzilamento lembrando de quando viu o gelo! Fantástico!
- Isso! Exatamente! O livro começa dessa exata maneira: muitos anos depois, diante de um pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía (acho que era ele) havia de se lembrar do dia em que seu pai o levou pra ver o gelo!
- Caramba, genial!
- Não é? A prolepse é o protagonista diante do pelotão de fuzilamento, e a analepse é a lembrança que ele tem então. Uma analepse dentro de uma prolepse: uma prolepse analéptica!
- Fantástico! Fantástico!
- E o sujeito escreve isso com uma naturalidade que o leitor sequer percebe! É na sutileza do emprego simultâneo de figuras de linguagens tão díspares que está a genialidade digna de um prêmio Nobel!
- Poxa, Toninho, onde é que tu aprendes essas coisas?
- Ah, na Wikipedia!
- ...! E eu achando que tu estavas estudando...
- Ué, estou estudando na Wikipedia, aproveitando os momentos vagos para aumentar o meu conhecimento, o que é que há de demérito nisso?
- O que tem o Demétrio? Soubesse?
- Demérito, meu filho! Tô dizendo que não tem nada de errado em aprender com a Wikipedia!
- Ah, isso sim. Achei que você tava sabendo do Demétrio!
- O que tem o Demétrio?
- Rapaz, ele tá arrasado. Sabe o tio dele...
- ... o Astrogildo? Sei sim. O que tem?
- Então. Parece que a dona Do Carmo morreu.
- Morreu? Como assim?
- Morreu, morrendo, ué. Sei lá!
- Que coisa! Quando foi isso?
- Ontem ou anteontem. Foi de madrugada. O Astrogildo tá arrasado.
- Mas por quê?
- Sei não, ele tá se sentindo culpado.
- Culpado? E ele matou a mulher, por acaso?
- É isso que ninguém sabe!
- Robinho, Robinho... olhe lá o que você vai me dizer!
- Então, escuta: o Demétrio disse que, sem querer, ouviu o tio se lamentando no caixão de dona Do Carmo e repetindo "meu Deus, o que foi que eu fiz, o que foi que eu fiz?".
- Rapaz... que coisa...
- E tem mais: todo mundo garante que a mulher tava ótima! Num dia, estava toda alegre e bem disposta, ia até pra Quermesse! De repente passou mal, ficou em casa, deitou, dormiu e morreu.
- É mesmo... rapaz, que coisa suspeita!
- Num é?
- É! E o que o Demétrio vai fazer disso?
- Nada, o que tu quer que ele faça?
- Sei lá... diga pra polícia, peça pra alguém investigar! Pô, é a tia dele!
- Tu acha, Toninho? Vai que o tio dele matou a velha mesmo? E vai que descobre que o Demétrio tá atrás dele? Vai que ele resolve matar o Demétrio também, só pra garantir?
- Hum...
- Que foi?
- ... e então, daqui a alguns dias, de madrugada, com as mãos do seu tio esmagando-lhe o pescoço, Demétrio vai lembrar de quando ouviu os lamentos de Astrogildo no velório de sua esposa. E vai se arrepender amargamente.
- Que é isso, Toninho?!
- Prolepse analéptica, Robinho, prolepse analéptica! Acha que é só o García Márquez que consegue, é?
- Ah, vai te fuder, brincando com coisa séria, po!
- Hahaha, que nada, mas fala aí, mereço ou não mereço um Nobel?
- Daqui a cem anos, talvez.